Sunday 19 June 2011

Al Berto, "O Anjo Mudo"


"Quando o vento se levanta e passa, tua cabeça adormecida põe-se a brilhar. Em redor dela um halo de sombra onde a minha mão entra, vagarosamente, pedindo-te um Sinal.

Procuro o rosto com os dedos afiados pelo desejo. Toco a alba das pálpebras que, de súbito, se abrem para mim. Um fio de luz coalha na saliva do lábio.

Ouvimos o mar, como se tivéssemos encostado a cabeça ao peito um do outro. Mas não há repouso nesta paixão. O dia cresce, sem luz e os pássaros soltam-se do pólen dos sonhos, embatem contra os nossos corpos.

Nada podemos fazer.

Um risco de passos ensanguentados alastra pelo chão da cidade. A noite cerca-nos, devora-nos. Estamos definitivamente sozinhos.

Começamos, então, a imitar a vida um do outro. E, abraçados, amamo-nos como se fosse a ultima vez...

O tempo sempre esteve aqui, e eu passei por ele quase sempre sozinho.

No entanto, recordo: deixaste-me sobre a pele um rasgão que já não dói. Mas quando a memória da noite consegue trazer-te intacto, fecho os olhos, o corpo e a alma latejam de dor.

Dantes, o olhar seduzia e matava outro olhar. Agora, odeio-te por não me pertenceres mais. Odeio-te. Abro os olhos. Regresso ao meu corpo e odeio-te. E, quem sabe se no meio de tanto ódio não te perdoaria - mas ambos sabemos que o perdão não existe.

Se fugias, perseguia-te. Mas o olhar começava a cegar. Sentia-te, já não te via. E o pior é que o tacto também esqueceu, rapidamente, a sensualidade da pele e o calor do sexo. O rosto aprendido de cor.

Hoje, tudo se sobrepõe. Nomes, rostos, gestos, corpos, lugares... um montão de cinzas que me deixaste como herança.

Não devo perder tempo com o ciúme. A paixão desgastou-me. E nunca houve mais nada na minha vida - paixão ou ódio.

Só isto: se me aparecesses agora, tenho a certeza, matava-te."

AL BERTO

Eu sei...
os lugares da paixão são escuros e sufocantes
"são belos, mas mortos" (Al Berto)
mas negá-los
é negar-nos
eu sei...

Tvv

Foto de Sofia Carvalho


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