Tuesday 17 November 2009

teresa vila verde no FeministizARTE

música ou performance? eis a questão

concepção musical e performer: teresa vila verde
direcção artística: vítor alves da silva
luz: margarida alves
vídeo: joana fernandes gomes
som: joão pedro carvalho

Evento performativo que cruza a música, o teatro, a performance, o vídeo e a instalação. Ao apresentar uma pianista que canta e fala, que conta histórias autobiográficas, que gosta de explorar inusitados espaços sonoros do seu instrumento e da sua voz, este projecto pretende desafiar convenções acerca do que é um concerto, uma pianista e uma mulher. música ou performance? eis a questão tem como base a improvisação, sendo esta pontuada com referências a outros universos musicais.

Evento que resulta da participação no workshop Autobiology, orientado pela dupla anglo-americana Curious (http://www.placelessness.com/) e parte integrante do National Review on Live Art (Glasgow, Fevereiro 2009), cujo objectivo foi explorar o visceral e os “gut feelings”, as conexões entre o corpo e a mente, biologia e autobiografia, visando a criação de material artístico “straight from the heart”.

Teresa no workshop autobiology


Para saber mais sobre esta e outras performances consulte a página:
http://www.myspace.com/teresavilaverde

Tuesday 3 November 2009

Desabafos de um Médico

Uma das experiências mais marcantes da minha vida de estudante foi assistir ao segundo parto da minha vida. Houve o meu há 25 anos. E houve o de uma jovem mulher que nunca conheci numa das já longínquas semanas de aulas na Faculdade. Era o Bloco de Obstetrícia que decorria e, em toda a ignorância daquele momento, assistia a uma das maiores alegrias que o género humano pode conhecer. O nascimento de alguém.

Muitos anos mais tarde, confrontei-me com a vivência do doente demente. E atroz o sofrimento e a perda de dignidade. Era um médico interno incauto e, a meu lado, estavam dois adolescentes. O pai, de idade avançada - mas, como sabiamente se diz em Psiquiatria Geriatrica, ainda "jovem" -, prostrado na cama. E aqueles dois olhares, a estrondarem esperança e desespero por todos os lados, seguiam-me por todo o lado. Auscultava aquela pessoa, que ardia de febre e frases soltas e desconexas. Os adolescentes, irmao e irma, vertiam discretas lágrimas. Diziam-me que não tinham mais ninguém com quem contar. Estavam, de facto, sós. A demencia de alguém é partilhada. Não estamos sós na doença.

Por momentos, olhava o corredor que dava em frente daquele quarto. Um outro doente deambulava pelo corredor, sem sentido definido. Como a vida da maioria das pessoas, talvez. Soltava gemidos, ininteligíveis. E a alma, que lutava por um pouco de dignidade, ia e vinha. O corpo daquele doente "trausente" movia-se de uma força inanimada, quase que por inércia. Olhava, incredulo e chocado, a manifestaçao violenta do que é a demencia. E, para muitos doentes, o estado de morto-vivo. Se-lo-a, um dia, para algum de nos?

Olhava de novo o doente, pai daqueles jovens. E pensava com toda a minha coléra e raiva se era "justo" uma vida humana se hipotecar daquela forma espectacular. O homem fora um dia um menino, com sonhos e projectos por concretizar. Era ignorante de todos os misterios insondaveis da vida humana que, mais tarde ou mais cedo, o peso e angustia do tempo que passa, fatalmente, nos traz. Poucas vezes nos atrevemos a revisitar a nossa existencia e a nos colocarmos as questoes fundamentais que gravitam em torno da aspiraçao mais universal: ser feliz. Alguma vez aquela pessoa imaginara terminar assim a sua vida? Senti-me, por momentos, e no usufruto do meu egoismo, o homem mais sortudo à face da terra. Quao melhores, talvez "bons", seriamos, de facto, se dessemos o real valor ao "taken for granted" dos nossos dias.

Muitas vezes, é a força fatal da demencia que sopra, com elegancia, os pilares ocos que nos constituem. O estado de "doença", na medida em que nos fragiliza, devolve-nos, muitas vezes, a verdadeira noçao do que é importante. Dissolve o narcissismo e a prepotencia subtil que a vida colectiva e de "copetiçao" nos imprime. Muitas vezes, sem que sequer tao pouco disso nos apercebamos. Por vezes, tarde demais. E ao olhar aquele homem, cadaver adiado que jamais voltaria a procriar, senti a minha mortalidade em todo o seu peso. Nos, médicos, temos um medo desgraçado da morte - quem nao tem? - e muitas vezes cometemos o "erro" estrondoso de conceber um acto médico isolado da carga afectiva, de "sentido", que pode significar uma mudança num rumo de vida. Ver o corpo de um doente demente putrificar-se, devorado por todas as possiveis e mais baixas co-morbilidades que se pode imaginar, é brutal. E horrivel chegar a casa e, enquanto o meu flatmate come um pessego, dizer-lhe, friamente, que uma doente morreu naquele mesmo dia depois de ter aspirado o caroço de um pessego. Adivinhem la? Sim, sofria de uma demencia e a Mae-Natureza, que felizmente nos fez mortais - aos bons e aos maus, aos corruptos e aos justos, aos egoistas e aos solidarios -, escolheu daquele modo ceifar a vida daquela mulher inocente.

Pergunto-me, por vezes, se realmente damos valor a estas coisas. Na anestesia fulminante que vivemos hoje, que tem o seu esplendor na solidao e na devassidao das conversas que gravitam nos ares de Nova Iorque e todas as grandes cidades, que tempo nos concedemos para renovar o "nosso" sentido? Ulisses, moldado por forças divinas, viajou longos anos pelos recessos do Mundo antigo à procura da sua "casa". Como bem diz Antonio Lobo Antunes, a moral da historia de Ulisses "foi ter chegado atrasado a casa".

Olhava o exterior daquele quarto triste. O vento soprava, suave, e libertava as folhas menos resistentes das arvores de Belle-Idée. Ao meu lado, aquela pessoa, que de todo desconhecia, estava ja "a caminho". E os dois adolescentes, cheios de ternura na sua expressao de perda, abraçavam-se.

Há dias fui ao dentista. Disse-me que tinha uma carie, mas que teria de escolher entre tratar isso ou fazer a limpeza dentaria que motivara a minha consulta. Pensando neste doente "demente" (e que, na realidade, podemos ser muito dementes na ausencia de demencia), com toda a frieza do Arctico, achei que aquele dentista nao tinha categoria para ser médico. E atroz que haja cada vez mais "profissionais da Medicina" e cada vez menos "profissionais na Medicina".

A coisa mais odiosa que nos pode suceder é a escolha voluntaria da "demencia" e da ignorancia de si.

Vítor Hugo
1 Nov 09